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Adão e eva
Sebastião Nunes_Adão e Eva no paraíso amazônico.jpg

A SOPA DE PEDRA DE PEDRO MALASARTES

     Viajando pelas belas e esburacadas rodovias do interior, Pedro Malasartes notou, pelos roncos do estômago, que estava na hora do almoço. Não tinha um centavo, como sempre, mas isso não era problema. Entrou na primeira cidade e foi direto à prefeitura, instalada na praça principal. Acocorou-se num canto da dita praça, abriu a capanga e extraiu uma panela de ferro, uma colher de pau e uma garrafinha de cachaça.
     Juntou pedaços de tijolo, construiu um fogão e catou gravetos que molhou com a cachaça. Encheu a panela com água da fonte luminosa, fez fogo com a binga e acendeu o fogão improvisado. A essa altura, já tinha em volta meia dúzia de desocupados.
     Fazendo de conta que estava sozinho, Malasartes sacou da capanga uma pedra grande, branca e arredondada, que lavou na fonte até ficar lisinha. Deitou a dita na panela, sentou no chão de pernas cruzadas e ficou remexendo com a colher de pau. Mexe que remexe, a água começou a ferver e a plateiazinha a crescer. Já seriam uns vinte ou trinta matutos e desocupados. E Pedrito sério e caladão, na dele.

APRIMORANDO A SOPA
     Depois de uma hora de fervura e de três idas à fonte, pois é claro que a água evaporava, Malasartes esticou os braços, espreguiçou, espichou as pernas e caminhou na direção de uma venda de secos e molhados. Chegando lá, declarou ao vendeiro:
     – Prezado senhor, estou ali na praça a preparar uma saborosa sopa de pedra. Conhece? Delícia pura! Mas ficaria bem melhor se contivesse um pouquinho de sal, alho e óleo que a temperassem melhor. Sabe como é, gosto de pedra é muito delicado.
     O vendeiro, indeciso entre considerar o visitante louco ou retardado, estendeu-lhe um saquinho de sal, duas cabeças de alho e um vidrinho de óleo, que pouco lhe custariam, mais vale uma curiosidade que dois vinténs. E também lá se foi para o meio da praça, junto com uns quinze marmanjos que, trepados no balcão, fofocavam e caçavam moscas. No que chegou junto da panela, Malasartes foi despejando os temperos e mexendo pra não encaroçar, pois, como declarou bem alto ao povaréu reunido, sal também encaroça, só bobo não sabe.

A SOPA PROGRIDE
     Nem trinta minutos eram passados quando o Pedroco se ergueu de novo e lá se foi, rumo a uma casita de amplo quintal, do lado esquerdo da prefeitura. Bateu muito do educado e, aparecendo a senhora dona à janela, pedinchou:
     – Minha cara senhora, estou ali no meio da praça a preparar uma saborosa sopa de pedra. Conhece? Delícia pura! Mas ficaria mais rica e perfumada se eu tivesse umas folhinhas de couve, algumas cenouras e batatinhas novas, coisas quase nenhumas.
     E coçou a cabeça, com risinho amarelo.
     Meio que desconfiada – e não sem razão – lá se foi a boa senhora até a horta, de onde extraiu o pedido: couve, cenoura e batata, repassadas ao pidão que, por sua vez, caminhou mui prestamente até a panela, acocorou-se e, com o canivete de tirar bicho-do-pé, cortar unha, picar fumo de rolo e podar cabelinhos do nariz, se pôs a tosar bem fininha a couve e a cortar em rodelas as cenouras e as batatas.
     A multidão – perto de duzentas pessoas – se mantinha firme, calada e interessada, enquanto Malasartes mexia que remexia na panela, da qual magníficos odores escapavam, como almas de bem-aventurados rumo ao céu.

ESTARÁ PRONTA A SOPA?
     Não. A sopa não estava pronta. Levantou-se novamente o Pedrasco e dirigiu-se ao açougue “A Vaca Atolada”, bem ali em frente, do lado direito da prefeitura, declarando modestamente ao entrar:
     – Meu nobre senhor, estou ali no meio da praça a preparar uma saborosa sopa de pedra. Conhece? Delícia pura! Mas ficaria bem melhor se eu tivesse alguns fiapos de carne gorda, outros de linguiça, e até algum naco de toucinho defumado que lhe aprimorasse o sabor. Se não fosse pedir muito...
     O nobre comerciante, apoiado por seus amigos de fofoca, que beiravam uns vinte, sem contar moscas e cachorros esfaimados, todos interessadíssimos no que se passava no meio da praça, prontamente acedeu ao humilde pedido.

FINALMENTE, A SOPA PRONTA!
     Não, senhoras, senhores e crianças. A sopa de pedra ainda não estava pronta, mesmo depois que o Malasartes cortou em toletes a carne-seca, a linguiça e o bacon, mexendo que remexendo. O cheiro? Deliciosíssimo! A enorme multidão – metade da cidade se acotovelando na pracinha – ansiava pelo desfecho e, com a boa educação que lhe viera do berço, lambia os beiços, esfomeadérrima. A sopa? Fervia.

COME QUEM PODE
     Decorridos mais dez minutos de suspense e salivação, eis que saiu da prefeitura o nobilíssimo alcaide, acompanhado pela corja de secretários, subsecretários, adidos culturais e econômicos, assessores especiais, ajudantes de ordens, chefes dos gabinetes civil e militar e outros que tais. A multidão boquiabriu-se.
     Não era para menos. Raramente trombava o digno prefeito com o zé-povinho ou o zé-povaréu, preferindo seus pares, os josé-polvos. No que chegou, e como na prefeitura aspirara o cheiro deliciosíssimo da sopa, mandou prender Pedro Malasartes por desacato às autoridades, ordenando em seguida à polícia que dispersasse no porrete os vagabundos. Enfim, comandou aos secretários que levassem a panela com muito cuidado até o salão de banquetes da prefeitura, onde a repartiram cuidadosamente entre si, de modo que todos dela puderam saborear, ainda que parcamente.
     Foi assim que se tornou famigerada e imortal a sopa de pedra de Pedro Malasartes, por obra e graça do nobre prefeito, de tanto que a elogiou em seus futuros discursos como candidato a qualquer coisa em qualquer lugar e a toda hora.
     Quanto ao dito Pedro, passou anos tomando sopa por conta da municipalidade.

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MATERNIDADE PARA TODOS OS GOSTOS

     Sei que não é fácil, mas me deu vontade de imaginar o que acontece em torno das mulheres antes do parto, quando a barriga cresce, as pernas incham e surge uma mistura confusa de alegria e medo. Mas para isso somos escritores: para imaginar. Existem várias coisas que nunca consegui entender, e uma delas é a comovente e tola ternura materna, com sua imensa carga de erros e acertos. Pai pode ser duro, cobrar, exigir, reclamar, podar, castigar. Mãe não consegue, no máximo finge que bate, dá tapinhas de amor, bota de castigo dois minutos – e basta. Está bem: conheço biologia o suficiente para saber da força do instinto, que o pai gera e some (na maioria dos casos), que cabe à mãe garantir a sobrevivência do filhote até que se aguente sozinho. Sei que entre algumas aves o macho choca os ovos e a fêmea fica de papo pro ar. No caso de pais humanos, uma regra é imutável: nasceu, logo aparecem parentes e vizinhos para declarar, com a maior sinceridade, que o fulaninho é a coisa mais linda da face da Terra. Por mais feio, enrugado e fedorento que esteja, embrulhado em panos finos ou em farrapos. “Que gracinha, é a cara da mãe!” Mas nem tudo são flores, mesmo quando o nascimento é sem traumas e a criatura nasce saudável, chorando como deve e mamando o necessário. Há um longo e espinhoso caminho a percorrer, ao longo de anos e anos de planejamento e acaso. Principalmente acaso.

MATERNIDADE DE MULTIMILIONÁRIO
     Toda dengosa, e antes de escolher o hospital, mamãe-futura escolhe a cidade. Nova Iorque? Não, muito barulhenta, e nunca se sabe quando os terroristas vão atacar de novo. Paris? Tem lá seu charme, mas mamãe-futura odeia queijo depois do almoço e as parisienses são umas eternas emburradas. Melhor Roma, quem sabe algum cardeal aceita ser padrinho? Mas e as italianas, peitudas e de boca larga? Vão acabar dando em cima do maridinho, tão carente nos últimos tempos, coitado. Madri, jamais: aquelas morenas cabeludas são todas umas carmens. Talvez Londres, mergulhada eternamente em fumaça, com seu horrível desfile de inglesas narigudas e vermelhaças. Pior é comer carne-de-vaca-sapecada, crua por dentro e queimada por fora, pingando sangue, aquilo que eles chamam rosbife, argh! Pode ser melhor algo nativo, ficar por aqui mesmo. O problema são os hospitais superlotados, as enfermeiras apressadas, as baratas – e a língua. Que tragédia, meu Deus, o neném nascer ouvindo português! Não é uma desgraça? Está decidido: Mônaco, terra de príncipes encantados e princesas loucas varridas. O futuro do filhote será brilhante.

MATERNIDADE DE RICO
     Quantos hospitais cabem no plano de saúde? Vamos escolher com calma. Aliás, é melhor combinar com o ginecologista. E cesariana, é claro. Mas um cortezinho mínimo, um centímetro no máximo. Não dá pra sair? Nesse caso é melhor desistir. Imagine se vou ficar com uma cicatriz horrorosa na barriga. Parto natural? Nem sonhando! Mamãe-futura é novata e detesta a ideia de ficar se espremendo horas e horas, com as enfermeiras saltitando em volta. Tudo deve ser planejado com o máximo de antecedência. É preciso pensar nos detalhes, das camisolas às fraldas descartáveis, dos biscoitos pra mamãe às papinhas pro filhinho. Como? Não vai ter papinha no hospital? Mamar no peito? Mas isso é uma nojeira! Ah, meu Deus, será que ainda existem amas de leite? Aquelas crioulas enormes, com peitos enormes, leite espirrando pra tudo quanto é lado? Se não existem mais, desisto. Eu é que não vou ficar com o bico do peito cheio de buracos. Cruzes! O futuro do filhote está garantido.

 

MATERNIDADE DE CLASSE MÉDIA
     Caminhando como um navio cheio d’água, chega mamãe-futura, distribuindo sorrisos melancólicos. Pobrezinha de mim! Ter de aguentar mais essa, não bastassem os nove meses de sofrimento e náuseas. Paciente, faz de conta que está feliz, mas está mesmo é morrendo de medo, nunca se sabe. No balcão, o marido se irrita com a demora. Assina o cheque sem fundos e suspira mais fundo que o cheque. Até o dia da alta dá-se um jeito. Mamãe-futura está com desejo de tomar sopa. Onde estamos? Se for em São Paulo, sopa de mandioquinha. No Rio, sopa de batata-baroa. Em Minas, é? Então é sopa de cenoura amarela mesmo. Mamãe-futura, com papai-futuro a tiracolo, sobe para o apartamento. Ah, estava esquecendo vovó-futura. Está lá, bem juntinho, mas só vai assumir o controle depois que o chato cair fora. Enquanto isso, faz de conta que não existe. Todos acomodados, ligam a televisão e ficam assistindo às eternas pancadarias e trepadas da novela das oito. O futuro do filhote é incerto.

MATERNIDADE DE POBRE
     Se mamãe-futura tiver sorte, consegue vaga na enfermaria lotada. Sobe pela escadinha de ferro e deita-se lentamente. Cruza as mãos na barriga e fiscaliza os mosquitos passeando no teto esburacado. Cinco minutos depois olha em volta. Todas as vizinhas estão olhando para ela. Aos poucos, o gelo derrete e a fofoca se generaliza. Só haverá pausa em alguns momentos. Na hora da comida, da visita do médico, das dores de cada uma. Então vem a maca e leva a que geme mais alto. Todas desejam felicidades e sorriem. Ficam esperando alguns minutos em silêncio. Depois recomeça a fofoca, até que mamãe-recém volta, com a coisinha mais linda do mundo dormindo ao lado. O futuro do filhote ninguém sabe.

MATERNIDADE DE MISERÁVEL
     Debaixo do viaduto mamãe-futura geme. O marido reclama: “Cala a boca, criatura, deixa de drama!” Faz frio ou calor, é dia de sol forte ou madrugada de chuva. De viaduto para viaduto o número de habitantes varia bastante. Oito, dez, doze. Duas ou três famílias, com filhos pequenos, alguns solteiros agregados. A vidinha continuava igual até que a mulher emprenhou. As contrações aumentam, as dores também. Mamãe-futura geme mais forte, sem se importar com a vizinhança. Desconsolado, o maridão coça a cabeça. Procura a garrafa de cachaça, derrama um trago goela abaixo. Limpa a boca na manga suja da blusa ensebada e manda os meninos magricelos tomarem conta da tralha. Então se levanta devagar e vai buscar uma ambulância na rodoviária. Costuma dar certo. “Se não der, azar”, resmunga ele. “Tem muita mulher sobrando no mundo”. O futuro do filhote é um salto no escuro.

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ALI BABÁ E OS 400 MIL LADRÕES DE SEU IRMÃO

     Kassim estava irritadíssimo. Sentado no imponente trono de ouro, diamantes, rubis, esmeraldas, topázios, ametistas e águas-marinhas, o Imperador dos Ladrões vomitava cobras e lagartos em cima de auxiliares diretos e indiretos:
     – Cambada de novos-ricos idiotas! Só porque sou multimulti-multibiliardário, acham que tenho de ficar esfolando a bunda nessa cadeira cravejada de joias, como qualquer reizinho da Idade Média. Quem me dera ser um simples vaga-lume, pairando livremente no firmamento!
     Sim, Kassim tinha dessas ambiguidades. Embora espumasse de ódio por qualquer ninharia, mandando degolar amigos íntimos ao menor escorregão ético, nunca perdia a deixa para uma citação pseudoliterária da pior qualidade.
     O problema não era tanto o espinhoso trono, mas a quantidade de ladrões reunidos em sua corte. Nos primórdios das aventuras furta-afana-abafa-surrupia, mal conseguira meia dúzia de malucos dispostos a partilhar os déficits da contabilidade mambembe. Agora, quando possuía uma caverna super-hipercamuflada, super-hiperequipada e super-hiper-enormérrima, o bando crescia como formigueiro na primavera. Segundo o último balanço, eram 166.667 homens, 133.333 mulheres e 100.000 crianças, totalizando 400.000 ladrões, todos da mais refinada extração, sem contar o harém particular, privilégio de lideranças fortes como a sua, constituído de 365.000 belíssimas odaliscas, ou seja, 1.000 gostosuras para cada dia do ano.

PAUSA PARA EXPLICAÇÕES
     A idade para integrar a quadrilha oscilava entre a mínima de dez anos e a máxima de 40, para homens. Para mulheres, entre oito e 25 anos. Aos 50, eram os homens compulsoriamente aposentados, recebendo o percentual que lhes cabia das infinitas riquezas, percentual escrupulosamente contado, medido e pesado pelo honestíssimo tesoureiro-geral. As mulheres se aposentavam aos 35, podendo daí em diante curtir numa boa a vida de esplendor que sem dúvida desfrutariam, com sua parcela também contada, medida e pesada, escrupulosamente, pelo tesoureiro-geral.

PAUSA PARA NOVAS EXPLICAÇÕES
     O referido tesoureiro-geral, que acumulava os cargos de ministro da fazenda e presidente do banco central, era o milésimo centésimo a ser nomeado nos escassos 11 anos em que Kassim reinava sobre seus ladrões. Desse total, os 1.099 primeiros haviam sido enforcados em galhos de tamareira, depois de apanhados com a boca na botija, perdão, com a mão metida em um dos milhares de sacos de jóias e moedas de ouro. Seus esqueletos ainda brilhavam ao sol do Golfo Pérsico, que Kassim não era besta de morar no deserto. Com exemplos tão clamorosos, nem era preciso exigir de um tesoureiro-geral honestidade total, integral e absoluta. Estava na cara. Ou isso ou o esqueleto rebrilhando de brancura e balançando ao vento. Sem perdão e sem roupa.

PAUSA PARA EXPLICAÇÕES FINAIS
     365.000 odaliscas era o máximo que qualquer potentado oriental ou mesmo ocidental, também dados a estripulias eróticas, jamais reunira. Salomão, o Sábio, contava apenas 200 amantes, menos de uma por dia do ano. Harum-Al-Rachid, o Favorito de Alá, reunira nos tempos de maior fausto apenas 1.460 jovenzinhas em flor, quatro para cada dia do ano. John F. Kennedy e Mick Jagger, conhecidos garanhões, nunca passaram de oito por noite, totalizando 2.920 anuais per capita. Fica evidente que, dispondo de 1.000 odaliscas por noturnália (de sono ou de vigília, sabe-se lá), Kassim jamais, ainda que fosse um Hércules do sexo, um Aquiles do erotismo ou um Napoleão das guerras vulvo-penianas, jamais, repetimos, chegaria a conhecer, biblicamente falando, um centésimo do cobiçado, cheiroso e alvoroçado rebanho.

VOLTANDO À IRRITAÇÃO REAL 
     O que mais irritava Kassim, como dissemos, não era tanto o trono, mas o número excessivo de ladrões que o cercava: 400.000 ladrões! E isso para um homem da maior honestidade, que pautara toda a sua vida pela retidão moral e pelo perfeito cumprimento das leis, nos menores detalhes. Isso, sim, era profundamente irritante. Ladrão, sim, mas ladrão honestíssimo, estimado e paparicado por todos.

ALI BABÁ ENTRA NA HISTÓRIA
     Foi quando, depois de rebolar o traseiro pra lá e pra cá pela centésima vez, tentando adequar o conteúdo ao continente, Kassim se lembrou do irmão mais novo, que atendia pelo codinome de Ali Babá, veja você que idiotice. Mais que depressa, chamou o primeiro-tenente, Abracadabra, e o segundo-tenente, Salamaleque, disposto a bolar um plano muito, mas muito inteligente, que permitisse aos três se safarem com sua parte da riqueza (nem um rubi a mais, honestidade acima de tudo), deixando o resto da tropa com enorme fortuna e sob a competente liderança do irmão.
     E foi o que fizeram. Depois de muito confabular, mandaram buscar o queridíssimo Ali, que morava no Brasil, com breve, eloquente e amorosa carta de fraternal saudade. Que colou, como sempre acontece nas histórias de fadas e bruxas.

ALI BABÁ ENTRA NA CAVERNA
     Não vou repetir, é lógico, a história toda. Ali Babá chegou do Brasil, parou diante da caverna, percebeu a tropelia dos ladrões e se escondeu. Ouviu a palavra mágica, que decorou. Quando o bando se afastou, depois que todos os 400.000 ladrões entraram e depositaram as novas riquezas honestamente adquiridas, Ali Babá se aproximou, recitou a palavra mágica, a porta se abriu e ele entrou.
     Ficou embasbacado? Nem por isso. Com sua super-hipercalculadora eletrônica, multiplicou os sacos pelo valor médio, dividindo tudo por 400.000. E concluiu que no Brasil os negócios eram muito melhores. Para isso, contava com pelo menos 85% dos candidatos em toda e qualquer eleição. De vereador a senador. Sem incluir as odaliscas e outras iscas.

               

ALEGRES DIVAGAÇÕES 

SOBRE A ESCRAVIDÃO HUMANA

     Escravidão é coisa mais velha que as barbas de Jeová. Nos tempos antigos, a “colheita” de escravos era fácil: os generais atacavam as cidades, matavam os homens armados e levavam os sobreviventes que valia a pena levar. Foi o que fez Alexandre Magno na gloriosa cidade de Tebas. Irritado com a resistência dos inimigos, ordenou que “passassem a fio de espada” todos os homens válidos, em torno de 6 mil. Dos sobreviventes – velhos, mulheres e crianças – mandou para a Macedônia 30 mil escravos. Foi também dessa forma que Roma se tornou o grande império da Antiguidade. Na Idade Média ocidental, os escravos eram os servos, que viviam (e morriam) à sombra dos castelos e dos barões. Na modernidade, tivemos de tudo. Desde escravos africanos importados (e mortos) aos milhares até os empregados nas fábricas burguesas, que trabalhavam 16 horas ou mais por dia, morrendo de fome ou exaustão. Como naqueles tempos não existiam faculdades de psicologia, sociologia, economia e administração de empresas, violência era confundida com sucesso e rapina com progresso. A vida era dura, a comida escassa. As pessoas não desfrutavam da liberdade, do conforto e do lazer modernos. Mas os tempos mudaram. Ou será que não mudaram?

UM EXEMPLO ENTRE MILHÕES
     Ivanildes Pereira da Silva mora nos cafundós e pula da cama às 5 horas para chegar ao trabalho às 7. Chega, bota um avental, varre o chão da lanchonete, abre as portas e começa a fritar pastéis, coxinhas e quibes. Placas apregoam: “6 pastéis por R$1,00”. “1 refresco e 3 pastéis por R$1,00”. Etc. Até 11 horas, quando almoça no “a quilo” em frente, fritou mais ou menos 350 pastéis, 280 coxinhas e 120 quibes. Recomeça às 11,30 e vai até às 16. Como muitos dos fregueses almoçam mesmo é salgado com refresco, o movimento aumenta bastante entre meio-dia e uma da tarde. Quando vai embora, depois de ceder o lugar a Francisca Oliveira dos Santos, terá fritado uma média de 700 pastéis, 560 coxinhas e 240 quibes. Trabalhando cerca de 26 dias por mês (folga às quartas-feiras), sua produção mensal de frituras é aproximadamente a seguinte:
     Pastéis: 18.200 unidades
     Coxinhas: 14.560 unidades
     Quibes: 6.240 unidades
     Total: 39.000 frituras/mês
     Se não brigar com o patrão, não for suspensa por atraso, não perder o emprego por doença, terá totalizado depois de um ano a produção dos seguintes salgados:
     Pastéis: 218.400 unidades
     Coxinhas: 174.720 unidades
     Quibes: 74.880 unidades
     Total: 468.000 frituras/ano

UMA VIDA DE DEDICAÇÃO
     Quase certamente Ivanildes morrerá antes de se aposentar. Mas vamos supor que – por um desses acasos improváveis – consiga aguentar os anos de serviço exigidos das mulheres. Pulando de lanchonete em lanchonete, ganhando sempre o mesmo salário de empregada sem qualificação, perderá os dentes, a saúde e a beleza – se é que teve alguma – mas não perderá o trabalho. E então, depois de 30 anos fritando pastel, coxinha e quibe, chegará o dia tão sonhado em que poderá ir para casa, sem horário, patrão e fedor de gordura queimada. 
     Estará encerrada sua vida produtiva. Não importa se casou, se teve filhos. Suas doenças não contam, nem suas opiniões, ideias, palpites. Quase certamente não teve tempo de pensar. Quando precisou votar, votou em quem era mais bonito ou tinha mais cartazes nos postes ou ria com mais dentes. Namorou com certeza, foi um bicho saudável na cama, amou e foi amada. Algumas vezes, foi feliz; outras, infeliz. Até que certo dia, como acontece na vida de pobres e de ricos, aquela dorzinha persistente aumentou, aumentou – e não teve santo que desse jeito. Parentes e amigos no velório? Dois ou três gatos-pingados. Enterro miserável, poucas flores, meia dúzia de lágrimas, nenhuma saudade.

LOUVOR DE IVANILDES
     Batalhadora incansável, Ivanildes Pereira da Silva foi exemplo de esforço, tenacidade e amor ao trabalho. Durante 30 longos anos, matou a fome e a sede de milhões, incontáveis milhões, que degustavam seus pastéis, suas coxinhas e seus quibes. Quantas vezes, olhando de esguelha, disfarçadamente, não surrupiou um pastel para contentar aquele pivetinho que olhava faminto a vitrine embaçada? E quantas outras não empurrou um copo de refresco para a velhinha que, escorando-se na porta, suava e tremia? Assim foi Ivanildes. Humilde exemplo de estoicismo, tão grande como as maiores heroínas antigas ou modernas, é um exemplo para todas as mulheres e – por que não? – para todos os homens. Não fez sucesso na TV, não gravou discos, não pintou quadros, não escreveu livros. Muito menos pintou discos, escreveu quadros, gravou livros. No entanto, ao cabo de 30 anos, sua vida representa – aos olhos de quem sabe ver – uma admirável carreira, digna dos maiores heróis antigos ou modernos, de Alexandre a Napoleão, de Anita Garibaldi a Pelé, de Hitler a Stalin.
     Na ponta do lápis, tintim por tintim, qual dos colossos acima seria capaz de igualar sua vastíssima produção, que abaixo revelo, perplexo com tanta grandeza? Qual?

PRODUÇÃO DE IVANILDES
     Pastéis: 6.552.000 unidades
     Coxinhas: 5.241.600 unidades
     Quibes: 2.246.400 unidades
     Total: 14.040.000 unidades, ou seja, mais de 14 milhões de pastéis, coxinhas e quibes fritos em lanchonetes vagabundas, em 30 longos anos de pobreza e escravidão, nestes magníficos tempos de luzes, biologia molecular e shoppings maravilhosos.

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