




I – QUEM É QUEM NA POLÍTICA BRASILEIRA
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O projeto era um mega-assalto ao Banco Central. Um dia antes de me reunir com os líderes da quadrilha, liguei para o gabinete de meu velho amigo Jules Maigret, da Polícia Judiciária francesa:
– Olá, caro Maigret, como tem passado?
– Assim, assim, prezado Marlowe. Se não fosse esse inverno interminável, Paris seria uma festa. O que está mandando?
Claro que eu não ligaria para saber do tempo. Ele também só ligava quando tinha assuntos sérios a tratar. Então fui direto:
– Preciso conversar um pouco com você. Estou no Brasil, mais especificamente em Brasília, envolvido com uma quadrilha de canalhas.
– Estou sabendo e não queria estar na sua pele.
– Agora que me envolvi não tenho saída. Mas estou lendo uma de suas aventuras antigas, e um trecho especialmente me chamou a atenção. Posso ler para você?
– Claro.
– Então lá vai: “Não é o ambiente político que é defeituoso, mas o ambiente no qual, queiram ou não, vivem os políticos”.
– Lembro bem. Está em Maigret e o ministro, publicado em 1954, lá se vão 63 anos. É uma história envolvendo políticos. Se não fosse minha boa memória...
–Essa mesmo. Continua assim: “Todos se veem todos os dias, apertam-se as mãos como velhos amigos. Depois de algumas semanas de sessões, estão se tratando com intimidade e prestando pequenos favores uns aos outros”.
Imaginei que, em sua sala às margens do Sena, Maigret acendia um cachimbo.
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O COMISSÁRIO NÃO SE IRRITA
Não queria tomar tempo demais de meu amigo, mas o tema era espinhoso.
– Diga, Maigret, você não está ocupado demais?
– Nem um pouco. Você até me alivia da papelada rotineira por alguns minutos.
De modo que, tranquilizado, continuei:
– O que eu gostaria, Maigret, é que você me ajudasse a compre-ender a diferença entre “ambiente político” e “ambiente em que vivem os políticos”.
Imaginei que, do outro lado, Maigret refletia. Por fim respondeu:
– Até onde sei, o problema do Brasil, como o de todo país emergente, é praticamente insolúvel – disse Maigret, depois de um minuto. – Me diga uma coisa: quantos são os brasileiros envolvidos diretamente com o poder?
– Andei pesquisando sobre isso – expliquei, abrindo minha pasta. – E creio que tenho resposta para a maioria das situações.
– Você pode me passar os dados?
– Pois não. Nas últimas eleições, 64.024 políticos se elegeram. Do total, 56.810 são vereadores, divididos entre 5.568 câmaras. Também foram eleitos 11.113 prefeitos e vice-prefeitos. E ainda 1.024 deputados estaduais. Os governadores e vice-governadores somam 54. Existem ainda 513 deputados federais e 81 senadores.
– Sabe quantos candidatos disputaram esses cargos?
– Você está querendo demais, meu caro Maigret.
– Nem tanto, prezado Marlowe. Apenas quantificando para depois qualificar.
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PERFIL DO CANALHA CLÁSSICO
– Como assim? – indaguei curioso. – O que quer dizer com quantificando para qualificar?
– Muito simples, Marlowe. Digamos que, para cada vereador eleito existissem 50 candidatos. Para cada deputado federal ou estadual, 20 aspirantes. Para cada prefeito e vice-prefeito, 5, em média. A mesma coisa para governador e senador.
– Começo a entender – disse eu, pulgas me picando furiosamente a orelha.
– Ainda não é tudo. E os que gostariam de se candidatar, mas, por este ou aquele motivo não o fizeram? Como exemplo, oposição dos cônjuges, da família, falta de vaga (principalmente), carência de recursos mínimos para a campanha etc.
– Certamente o número de candidatos a candidato cresceria muito, de modo a constituir boa parcela da população.
– Isso mesmo, Marlowe – disse Maigret. – Era aí que eu pretendia chegar. E qual é o objetivo principal de um candidato a político no Brasil e em qualquer parte do mundo?
– Até onde compreendi, Maigret, durante minha ainda curta vivência política, os objetivos principais são dois: grana e poder, com raríssimas exceções.
– Entende agora por que o ambiente em que vivem os políticos é defeituoso? De todos os aspirantes a candidato – que são milhões – só se tornam candidatos algumas centenas de milhares. E quais são as principais características desses milhares?
– Não posso dizer que inteligência seja uma delas – disse eu, entendendo afinal a merda em que o país estava mergulhado. – Talvez esperteza, ganância, agressividade, vontade de mandar, alguma coisa do tipo. Quem sabe, todas juntas.
– Você está certo, Marlowe – disse Maigret, depois de breve silêncio, decerto para encher um cachimbo. – Se um país está podre desde a origem, se um razoável senso ético não permeia as relações entre as pessoas, se por meio de educação e cultura não se preparou essa gente para pensar coletivamente, não há esperanças.
– Então você acha que o Brasil não tem futuro, meu caro Maigret? Ou, em outras palavras, chegando ao poder só por milagre se escapa?
– Você é que está dizendo, Marlowe. Mas, pelo que sei, a imensa maioria dos eleitos não aparenta qualquer preocupação ética. Nesses casos, ou o compromisso ético passa a ser obrigatório como condição essencial para a candidatura, ou tudo continuará com está, com pequenos avanços e recuos vergonhosos. Principalmente no Brasil, nos Estados Unidos e outros países em que quase todo político é quase sempre um oportunista.
Suspirei, botei o rabo entre as pernas, e me despedi de meu amigo Maigret.
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II – TIRADENTES NÃO MORREU NA FORCA
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O historiador maranhense Austregésilo Cerqueira Nunes acaba de publicar colossal estudo (O enforcado que deu no pé, edição do autor, 666 páginas), com o objetivo de provar que o protomártir da independência brasileira não morreu enforcado. Muitos estudiosos vêm há anos debulhando o mesmo assunto, mergulhados nas densas brumas que cercam o mais famoso episódio de nossa história. Com efeito, tornaram-se transparentes, hoje em dia, vários tópicos obscuros da malograda conspiração. Sabe-se, por exemplo, que Cláudio Manuel da Costa não se suicidou, mas foi assassinado para não delatar gente graúda (ver Silviano Santiago Em liberdade, segunda parte).
Entre os figurões coloniais, é certo que o governador-general, Visconde de Barbacena, estava envolvido até o pescoço na conspiração, motivo pelo qual demorou tanto para denunciar o complô ao vice-rei, seu próprio tio. O principal delator, Joaquim Silvério dos Reis era tio-avô do intrépido Duque de Caxias. Que o poeta Tomás Antônio Gonzaga foi apaixonado e noivo de Maria Doroteia Joaquina de Seixas, a Marília de suas comoventes liras, consta dos livros escolares. Mas quase ninguém refere a “Marília loura”, a outra, com quem teve um filho. Por falar em filhos, o poeta Cláudio tinha seis. O próprio Tiradentes, bom violonista e razoável cantador de modinhas, enterneceu inúmeras donzelas românticas de Vila Rica e do Rio de Janeiro, tendo pelo menos uma filha, Joaquina. Tudo isto é sabido por alguns e desconhecido por quase todos. Mas a grande polêmica, que toca fundo o orgulho nacional (se é que nos resta algum, depois dos sucessivos episódios de miséria moral que temos vivido), está relacionada com a monumental farsa envolvendo carrasco, magistrados, militares, testemunhas e notável hipnotizador da época, com o objetivo de esconder a verdade sobre a morte de nosso herói maior, se é que ele o foi.
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ROENDO A CORDA PUÍDA
As primeiras 50 páginas do livro são dedicadas a erudita introdução, que relaciona mais de 200 obras sobre a Inconfidência Mineira, prova da competência, ou pelo menos da dedicação, do autor. Mas logo no primeiro capítulo surge a nova versão, muito bem documentada, com diversas testemunhas oculares narrando como viram o hipotético enforcamento. Como não interessava a ninguém uma versão menos heroica dos fatos, tais depoimentos permaneceram durante mais de dois séculos confinados aos cafundós dos arquivos públicos.
Segundo quatro companheiros do alferes, que presenciaram de perto o hipotético enforcamento, a corda se rompeu no momento em que Tiradentes despencou, rolando o corpo para debaixo do cadafalso, de onde foi imediatamente recolhido pelos assustados amigos. Conduzido a uma casa próxima, constatou-se que nada sofrera na queda, já que a corda, embora grossa e áspera, estava inteiramente roída por ratos e baratas, e ainda apodrecida pela umidade e pela maresia dos porões cariocas.
Poucos dias depois, graças a documentos falsos, Tiradentes se tornou Joaquim José de Freitas, vivendo o resto da vida como barbeiro-cirurgião, dos mais requisitados, em São Luís do Maranhão, cidade que o acolheu como filho. Morreu aos 72 anos, cercado de netos e bisnetos, gordo e próspero, mas com imensa mágoa de ser apenas grosseira falsificação do herói que poderia ter sido.
HIPNOTIZADOR EM CENA
Sabe-se, com absoluta certeza, que a cerimônia foi assistida por centenas de cidadãos (homens, mulheres e crianças), além de policiais e autoridades, incluindo o capuchinho que absolveu o réu de seus pecados e deu-lhe a beijar a cruz. Como se explica então que Tiradentes tenha escapado ileso, diante de tal multidão, que esperava com sádico prazer o enforcamento? Esclarece nosso erudito historiador que, entre os amigos do alferes, havia um discípulo do famoso conde Cagliostro, recém-chegado da Europa, com quem estudara a fundo não só hipnose individual e coletiva, como ultraenigmáticos arcanos da alquimia, sendo capaz de autênticos milagres, conforme demonstrou posteriormente nas províncias de Minas, São Paulo e Bahia.
Pois bem. Postando-se de frente para a multidão logo após o “enforcamento”, induziu tão profundo transe hipnótico coletivo que todos viram, com indiscutível clareza, a queda do corpo, o salto do carrasco sobre o corpo agonizante, os momentos finais da agonia e a descida do cadáver, despido e esquartejado ali mesmo.
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EXPOSIÇÃO DOS DESPOJOS
Ora, se até aí a pesquisa pode ser considerada convincente, já que ninguém nega o hipnotismo, como se explica que o corpo esquartejado tenha sido exposto em vários pontos, inclusive em Ouro Preto, que teve a “honra” de receber a cabeça do protomártir?
Austregésilo não se deixa intimidar. Com apoio em farta documentação, demonstra que não foi Tiradentes o esquartejado. Nem foi entre as ruas Senhor dos Passos e da Alfândega que o fizeram após o falso enforcamento, mas muito depois e – sem sombra de dúvida – a um mendigo anônimo, que a polícia encontrou morto na porta da Igreja da Lampadosa e prontamente entregou aos esquartejadores. Argumenta mais o historiador: “Como seria possível, mesmo a familiares e amigos próximos, reconhecer o inditoso Tiradentes após três anos mergulhado no fundo de asquerosa masmorra de pedra nua e limosa, sem um único banho, com a roupa em farrapos, os cabelos ensebados, tendo por companhia baratas, ratos, pulgas e percevejos asquerosos?” Trata-se de argumento irrefutável.
O HEROÍSMO DOS HERÓIS
Depois de mais de 500 páginas de depoimentos, análise, testemunhos e volumosa documentação da época, o autor encerra seu monumental estudo narrando os derradeiros anos de Tiradentes, ou seja, de Joaquim José de Freitas, em São Luís. Conta por exemplo que, frequentemente, eram os parentes acordados com gritos terríveis do antigo alferes que, em sonhos, via-se conduzido à forca e efetivamente enforcado.
Em outras ocasiões, muito mais frequentes, o encontravam soluçando pelos corredores, alta madrugada, a clamar que queria ser enforcado, que precisava provar quem era e que nenhum herói verdadeiro foge a seu destino de sofrimento e glória.
Hoje, diante da avalanche de mentiras, vazamentos e falsas denúncias que nos empurram diariamente goela abaixo, nada há de espantoso nas descobertas do ilustre historiador.
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III – O ÚLTIMO ENCONTRO DE JACKIE E MARILYN
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Jackeline Kennedy sorveu um gole de vinho e repuxou a saia até mostrar metade da coxa.
– Não sou menos sexy do que você, sou? – perguntou a primeira-dama com um sorriso cínico e ambíguo e sacana.
– Não – respondeu a atriz famosa com toda a seriedade. – Você não é menos sexy do que eu. – Com um movimento displicente, levantou a saia para exibir também metade da coxa.
– Talvez na cama? – insinuou Jackie.
– Talvez na fama – respondeu Norma Jeane.
As duas se olharam quase amigavelmente. Norma Jeane provou um pouco de uísque puro, estalando a língua. Jackie fez de conta que não ouviu.
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PAPO DE RANDEVU
Jackie tinha 45 anos naquela tarde de 1962. Norma Jeane tinha 36. Não eram íntimas nem inimigas, apenas partilhavam o mesmo homem. Com outras, é claro, e nenhuma das duas se importava com isso. Não eram frívolas nem pequeno-burguesas.
– Às vezes me pergunto o que ele quer – confidenciou a primeira-dama. – Muitas vezes acho que seria melhor montar um harém aqui na Casa Branca.
– Assim não teria graça – respondeu a atriz famosa. – Conheci tantos homens que sou capaz de adivinhar o que pensam.
– E o que é que Jack pensa?
– Pensa que quanto mais variedade, melhor. E quando mais secreto, melhor.
– Só isso?
– Não. Ele precisa de sexo como precisa de comida. Variedade e quantidade.
As duas brindaram, uma com vinho, a outra com uísque. Jackie era sofisticada e preferia vinhos franceses e californianos. Norma Jeane era rústica e gostava de bebidas nativas como bourbon e rye.
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A BATALHA DAS CALCINHAS
Quem primeiro mostrou a calcinha foi Jackie.
Ao se recostar na poltrona, depois de depositar o cálice na mesinha de centro, a primeira-dama abriu lentamente as pernas, deixando que Norma Jeane visse sua calcinha de seda preta rendada nas bordas.
Norma Jeane era uma adversária de peso. Sem largar o copo, a atriz famosa inclinou-se para trás e abriu descaradamente as pernas. Sua calcinha era vermelha, de um vermelho vivo como seus lábios.
– Creio que nossos gostos não são exatamente iguais – disse Jackie. – Pelo menos em termos de cor. E talvez de homens.
Também acho que não – concordou Norma Jeane. – Você gosta de preto, eu de vermelho. Você gosta de um homem só, eu de muitos.
– Quem disse que eu gosto de um homem só? – indagou cuidadosamente a primeira-dama. – Onde você se informou? No FBI?
– Apenas imaginei – respondeu a atriz famosa com uma ponta de ironia. – Minha especialidade não são mulheres, mas homens. Pensei que você e Jack fossem um desses casais caretas e monógamos. De sua parte, é claro.
A BATALHA DA LINGUAGEM
– Ah, você conhece a palavra monogamia? – perguntou a primeira-dama, erguendo as sobrancelhas. – Pensei que atrizes tivessem vocabulário limitado e só falassem de sexo, bebida e, naturalmente, dólares.
– Você não está com ciúme, está? – perguntou por sua vez a atriz famosa. – Ciúme não combina com uma primeira-dama, ainda mais com a mulher de Jack.
– Não, não estou com ciúme. Só me espantei um pouco. Desculpe.
– Somos quase amigas, não somos? – perguntou um pouco ansiosa a atriz famosa. – Longe de mim ofendê-la. Já basta furtar um pedaço do marido.
– Sim, basta furtar um pedaço do marido – respondeu a primeira-dama. – Se eu fosse me preocupar com quem Jack transa, não teria me casado com ele.
– A vida de atriz é mais fácil – disse Norma Jeane pensativa. – Mesmo porque todo estúdio é um puteiro e todo homem num estúdio é gay ou tarado.
– Igualzinho por aqui – respondeu Jackie, baixando a voz. – Se você visse o que se passa nos banquetes e coquetéis oficiais ficaria de queixo caído.
DERRUBANDO O NÍVEL
– Creio que o universo do cinema é pior – disse a atriz famosa. – Hollywood é o maior puteiro do mundo, já disse alguém. Festa de estúdio sem suruba não é festa. Sem cocaína não tem graça. Sexo é só uma mercadoria de troca.
– Em política é a mesma coisa – disse a primeira-dama. – Gente fraca não tem a mínima chance.
Fizeram uma pausa. Beberam mais um pouco.
– Vou me matar esta noite – disse calmamente a atriz famosa.
Jackie olhou para dentro do cálice. Enomancia é a velha arte da adivinhação pela cor e pela textura do vinho. Jackie era enomante. Norma Jeane sabia que Jackie era enomante. As duas se encararam. Mas nenhuma delas disse nada.
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IV – COMO FERNANDO PESSOA GANHOU UM PRÊMIO DE
5.000 ESCUDOS E PERDEU DOIS ANOS DE VIDA
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O destino dos grandes poetas, mais do que o de escritores e poetas menores, costuma ser regido por Momo, filha da noite e deusa da ironia e do sarcasmo. No caso de FP, a deusa caprichou na dose.
Astrólogo fascinado pela numerologia, Pessoa fez o próprio horós-copo, com base nos dados de seu nascimento: 15 horas e 20 minutos de 13 de junho de 1888. Só que ele próprio não tinha certeza dos minutos. Ainda assim, admitiu como verdade que morreria em 1937, como determinava o horóscopo.
Outro astrólogo português, Paulo Cardoso, refez os cálculos, alterando o horário do nascimento para 15 horas e 22 minutos, chegando à conclusão de que FP morreria no dia em que de fato morreu: 30 de novembro de 1935.
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ANOS FATÍDICOS
Inúmeros dados relevantes, todos fundamentais para sua vida e obra, mostram que os anos terminados em cinco foram em algum aspecto determinantes.
A mãe se casou pela segunda vez em 1895 e, no mesmo ano, a família partiu para Durban, na África do Sul, onde o poeta se educou.
1905: regresso definitivo a Portugal.
1915: lançamento da revista “Orpheu”, divisor de águas em sua vida e no modernismo português.
1925: morte da mãe, seguida de agudo sentimento de abandono.
Assim, de 10 em 10 anos, graves acontecimentos marcaram-no, de modo que algo de muito sério deveria ocorrer em 1935. Mas não sua morte, prevista por ele próprio para 1937.
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TENTATIVA FRACASSADA
FP esteve sempre inseguro quanto à organização e à publicação de sua obra. Mais do que insegurança, mostrava profunda indecisão, pois nenhuma das ordens que se propunha chegava a satisfazer. Dois episódios levaram-no a finalmente se decidir, pela pressão do tempo e pela dificuldade de ganhar a vida.
Em 1932, seus rendimentos mensais alcançavam, segundo o crítico Alfredo Margarido, apenas 300 escudos, “que mal chegavam para suprir-lhe as necessidades vitais”, incluída apreciável quantidade de bebida.
Como estivesse vago o cargo de conservador do Museu-Biblioteca de Cascais, decidiu o poeta candidatar-se. Quase completamente desconhecido, exceto nas rodinhas da vanguarda literária, e sem cartas de recomendação apropriadas, não obteve a indicação, voltando à vida medíocre de sempre.
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CORRIDA CONTRA O TEMPO
Em 1934, o Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, antigo companheiro do Orpheu, instituiu o Prêmio Antero de Quental. Ferro e Ferreira Gomes, amigos do poeta, convenceram Pessoa a se inscrever.
O tempo era curto. No entanto, o livro Mensagem estava pronto desde setembro. Impresso em outubro, foi colocado à venda em primeiro de dezembro, dia em que Portugal comemora a libertação do domínio espanhol, ocorrida em 1640.
Havia outra dificuldade: o regulamento exigia que os livros inscritos tivessem um mínimo de 100 páginas. Mensagem contava apenas 44 poemas curtos. Para resolver o problema, Ferreira Gomes combinou com o impressor deixar em branco as páginas da esquerda, prática usual em livros de poesia magros.
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SUCESSO RELATIVO
Até aí, tudo bem. O júri era presidido pelo poeta Mário Beirão, antigo companheiro dos tempos da Renascença Portuguesa, que se tornara salazarista ferrenho. Só que, na escolha do vencedor, chegou-se à conclusão de que o livro de Pessoa, hermético e profundo, não cumpria o principal requisito do concurso, de propaganda do Estado Novo e de exaltação do nacionalismo à moda de Salazar.
Resultado: o primeiro prêmio foi dado ao padre Vasco Reis, pelo livro Romaria, cabendo a Mensagem o prêmio de segunda categoria, destinado não a um livro, mas a um único poema.
António Ferro não era membro do júri, mas autoridade máxima não só do certame como do Secretariado. Para não ofender Mário Beirão ou o padre Vasco Reis nem desagradar o amigo Fernando, decidiu que a este caberia também a quantia de 5.000 escudos, igual à do primeiro prêmio.
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VALORES ABSOLUTOS
Fernando Pessoa se mostrou satisfeito com o acordo. Tanto que chegou a publicar, no Diário de Lisboa, em janeiro do ano seguinte (1935), um artigo de louvor ao “poema adorável”. Nele, escreveu:
“O nosso catolicismo é (...) uma meiguice religiosa, preguiço-samente incerta do que em que realmente crê. Por isso, o nosso vero Deus Manifesto é, não o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido católico chamado Menino Jesus. (...) Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele.”
Não se sabe se o “admirável artista”, como Pessoa se referiu ao padre, gostou da crítica. O certo é que, para quem ganhava 300 escudos por mês, 5.000 davam para viver quase um ano e meio, mergulhado em poemas, cigarros e álcool.
O problema foi que, tendo errado o próprio horóscopo, FP, depois de sofrer terríveis cólicas hepáticas, morreu às oito e meia da noite do dia 30 de novembro desse mesmo ano, de cirrose ou pancreatite aguda.
O destino lhe furtara os dois anos com que contava para organizar a obra.
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