




Delírios de Franz Kafka no dia da morte
Torcendo nas mãos um lenço de seda, Dora Diamant, namorada de K., soluçava. Vestida de preto, sentada numa poltrona do consultório, seus ombros estreitos oscilavam para a frente e voltavam de repente, como se ela acordasse bruscamente de um cochilo. Atrás da mesa, numa poltrona alta, o doutor Hoffmann, diretor da clínica, mastigava a ponta de um charuto enquanto ouvia Max Brod. Este dizia:
– Reconheço, doutor, que o caso é delicado. Sem poder engolir, K. corre o risco de morrer de fome, como o personagem de um conto que tirei dele hoje. Só falta ele se imaginar transformado num inseto asqueroso.
Os três riram.
NO QUARTO
K. não tinha fome. A garganta doía. Na mesinha de cabeceira, entre frascos de remédio, um prato de sopa esfriava e alimentava moscas.
– Morfina agora, posso? – sussurrou para a enfermeira.
– Está doendo muito? – perguntou ela. – Minhas instruções dizem que só devo aplicar morfina quando a dor estiver insuportável.
– E quem decide quando é ou não é insuportável?
Os dois riram.
NO CONSULTÓRIO
Dora voltou a soluçar e o doutor Hoffmann a mastigar seu charuto. Max Brod tirou do bolso um manuscrito.
– Vejam vocês. K. não pode engolir e, como disse, acabo de tirar dele um conto, que intitulou “O artista da fome”. É a história de um jejuador que passa 40 dias e noites sem comer nada. Quando seu empresário quer interromper o jejum ele protesta, dizendo que aguentaria muitos dias ainda.
Os três riram.
NO QUARTO
– Talvez não esteja realmente insuportável agora – disse K. – É como uma dor de dente. Se não penso nela, não dói.
– Então por que não pensa que é dor de dente?
– Todas as vezes que tento, ela volta. Como se me chamasse: “Ei, olha eu aqui, estou na sua garganta e não no dente. Será que você me esqueceu?”.
Os dois riram.
NO CONSULTÓRIO
Max Brod disse:
– Vou ler pra vocês um trecho do conto, que lembra a situação de nosso amigo neste momento. Vejam se não é parecida.
“– Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum – disse o artista da fome.
– Nós admiramos – retrucou o inspetor. – Por que não haveríamos de admirar?
– Mas não deviam admirar – disse o jejuador.
– Bem, então não admiramos – disse o inspetor. – Por que é que não devemos admirar?
– Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo – disse o artista da fome.”
Os três riram.
NO QUARTO
– Parece até que estou jejuando – disse K.
– Pois não devia – disse a enfermeira. – Vou obrigá-lo a comer um pouco. Depois aplico a morfina.
– Por que não aplica a morfina e depois me obriga a comer um pouco?
Os dois riram.
NO CONSULTÓRIO
– Rimos antes da hora – disse Max Brod. – Ainda não terminei a leitura. Continua assim:
“– Bem se vê – disse o inspetor. – E por que não pode evitá-lo?
– Porque eu – disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. – Porque eu não pude encontrar um alimento que me agradasse. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e teria me empanturrado como você e todo mundo.”
Os três riram.
NO QUARTO
– Por que não fazemos diferente? – disse K. – Você me dá um beijo bem gostoso, a dor passa, e então me obriga a comer um pouco.
– Safadinho você, não é? – disse a enfermeira. – E quem disse que eu gostaria de beijá-lo?
– Ninguém. Mas o efeito é mais rápido que o da morfina.
Os dois riram.
NO CONSULTÓRIO
A enfermeira entrou correndo.
– K. morreu. Pediu que eu lhe desse um beijo em vez de aplicar morfina.
– E você o beijou? – perguntou o doutor Hoffmann.
A enfermeira balançou a cabeça, concordando.
– Fez muito bem – disse Max. – Beijo é de fato muito melhor do que morfina.
Os quatro riram.
Ray Bradbury encontra seu primeiro homenzinho verde
O fato, improvável e extraordinário, aconteceu no verão de 1952, em Los Angeles, Califórnia, pouco depois do almoço. Foi assim.
O terceiro escritor de contos fantásticos mais famoso do mundo acordou de breve cochilo na tarde fumegante. Estava na varanda de sua casa, o recanto mais fresco e agradável àquela hora. Acordou ouvindo uma risadinha baixa e irritante:
– Hi, hi, hi...
Então olhou e lá estava ele, equilibrando-se no galho do pessegueiro: verde, com discretas bolinhas marrons e amarelas no peito, dois grandes olhos alaranjados, duas orelhas pontiagudas, três dedos compridos nas mãos e nos pés. Completamente nu. Completamente careca. Aliás, não havia sinal de pelo em qualquer parte de seu corpo. Era um pouco barrigudo e teria entre 50 e 60 centímetros de altura.
APRESENTAÇÕES
O escritor famoso esfregou os olhos, mas nem precisava. Sabia que era verdade, que o homenzinho estava lá e não era humano.
– Boa-tarde – cumprimentou. – Fez boa viagem?
O homenzinho verde pulou do galho do pessegueiro para cima da mesinha ao lado do escritor famoso, pousando os pés de três dedos em cima de um livro.
– Talvez sim, talvez não, dependendo do que você chama de viagem. Se está pensando em deslocamento espacial, errou. Se está pensando em deslocamento temporal, errou também. Nem uma coisa nem outra.
O escritor famoso percebeu que o marciano era tagarela e deu corda.
– Se não foi espacial nem temporal, como foi sua viagem?
– Simplesmente não viajei. Está tudo dentro de sua cabeça, está tudo aí.
EXPLICANDO MELHOR
O escritor famoso sabia que era por aí mesmo, mas não tinha certeza e precisava ter certeza. Então perguntou:
– Como não viajou? Como foi que apareceu aqui? E por que essa forma óbvia?
– Muito simples – respondeu o homenzinho verde. – Estou aqui sem sair do lugar. Quanto à aparência, vocês, humanos, me imaginaram assim. Há muito tempo que me representam assim. Pessoalmente, acho horrível. Mas podia ser pior, claro.
– Pior, como? Você já é bastante feio do jeito que está.
–Seria pior se me exibissem como a caricatura de um, digamos, ornitorrinco ou de uma lagosta. Mas também não sou nem um pouco uma caricatura de vocês.
– Tá bom. Admito o erro. Mas como veio parar aqui, logo na minha casa?
A ESCOLHA
– Boa pergunta – respondeu o homenzinho. – Você escreve contos fantásticos. Dizem até que é um bom escritor, não sei, não sou crítico. Mas publicou alguns livros e até ganhou prêmios e dinheiro. Andei folheando “Crônicas marcianas” e gostei de ver como sua imaginação foi longe. Você é muito convincente.
– Obrigado, mas ainda não respondeu.
– Não seja apressado, que chego lá. Escolhi você porque sabia que não iria se assustar. Primeiro ponto. Assumi esta forma, como já expliquei, porque é assim que a maioria das pessoas me imagina. Segundo ponto. E não vim de lugar nenhum, não moro em lugar nenhum ou, de alguma forma, moro em toda parte. Terceiro ponto.
– Gostei de sua lógica. Bem cartesiana. Mas explique uma coisa. Em “Crônicas marcianas” os marcianos assumem a forma que desejam e realmente moram em Marte. E você, tem ou não tem forma? Tem tamanho? Cor? Três, quatro, cinco, dez dimensões? Ou nenhuma?
– Mas que sujeito apressado. Quer saber tudo de uma vez só!
ENTENDENDO MELHOR
– Pode contar aos poucos, não me importo. Só quero compreender.
– Veja só. Vocês terráqueos, inclusive seus melhores cientistas, estão malucos para encontrar vida fora da Terra. Mas que vida procuram? Na maioria dos casos, vida igual à sua. Criaturas dependentes de água. Ora, quanta ingenuidade!
– Nem todos, meu caro, nem todos. Divulgadores apressados é que dizem isso. Cientistas sérios pensam mais longe. Que tal seres de fogo, vivendo dentro de sóis e se alimentando de hélio líquido? Ou seres tão tênues que permeiam tudo, suas moléculas a quilômetros de distância umas das outras? Ou ainda inteligências puras, constituídas por trilhões de sinapses, ou seja, eletricidade pura se espalhando pelo Cosmo?
– Uau! Sua imaginação é realmente fértil. Talvez até mais do que deveria ter.
– Sim? Então cheguei perto?
– Não, não chegou. Na verdade, vocês nunca vão chegar perto. Algum dia, milhares de anos no futuro, seres extraterrestres se darão a conhecer, mas sempre sob forma que vocês enxerguem, cheirem, apalpem. Por enquanto é impossível.
E FIM DE PAPO
– Impossível? Mas impossível por quê?
– Imaturidade, meu amigo, imaturidade. Note que estou falando sua língua, com palavras que você entende e não, por exemplo, como alguns de seus cientistas gostam de imaginar, por símbolos matemáticos. Bah! Quanta besteira.
– Mas precisamos imaginar, calcular, intuir. Precisamos ter alguma base para nossas pesquisas. Sondas espaciais, telescópios gigantes, hipóteses aceitáveis...
– Tudo inútil. Você gosta de escrever sobre crianças, não gosta? É por aí. Vocês não passam de crianças brincando de explorar o Universo. Adeus!
O homenzinho verde desapareceu. O terceiro escritor de contos fantásticos mais famoso do mundo olhou para o céu. Claras nuvens deslizavam. “Deus, oh, Deus!”, pensou, “que vida miserável a nossa”.
Como Apollinaire driblou sem querer o comissário Maigret
Em 24 de dezembro de 1906, a famosíssima Mona Lisa, talvez a obra mais importante do famosíssimo Leonardo da Vinci, desapareceu do famosíssimo Museu do Louvre. Imediatamente acionada, a polícia judiciária francesa iniciou as investigações, à frente o famoso comissário Maigret.
Interrogados minuciosa e exaustivamente, os guardas do museu juraram nada ter visto de extraordinário, apenas turistas e frequentadores habituais, muitos deles jovens pintores realizando cópias de quadros valiosos, dentre os quais o desaparecido.
FRIO E FOME
Numa água-furtada do bairro de Montparnasse, à margem esquerda do Sena, três desses jovens pintores tiritavam de frio. O mais novo deles, Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, mais tarde conhecido como Pablo Picasso, contava 18 anos. Outro, Mojša Zacharavič Šahałaŭ, mais tarde Marc Chagall, tinha 19. O mais velho, de 24 anos, ostentava nome mais simples, Georges Braque. O primeiro era espanhol, o segundo bielorrusso e o terceiro, francês, de Argenteuil.
Para se aquecer, queimavam de tempos em tempos os preciosos estudos realizados no Louvre naquela véspera de Natal. Mas o pior era a fome.
– Que merda! – resmungou Pablo, furioso. – Desde o meio da tarde que Gui ficou de aparecer trazendo a ceia. Onde terá se enfiado?
– Deve estar bêbado como um gambá num boteco qualquer – disse Chagall. – Quando aparecer, se aparecer, será para exibir um poema novo.
Braque apenas balançou a cabeça, concordando desanimado.
MAIGRET TRABALHA
– Estamos no mato sem cachorro, meu caro Lucas – disse o inspetor-chefe a seu mais antigo e fiel colaborador no Quai des Orfévres, sede da polícia judiciária.
– Concordo, chefe – declarou o sargento Lucas. – Ação de tal envergadura deve ser proeza de sofisticada quadrilha internacional especializada. Principalmente porque é impossível vender uma pintura daquelas.
– Vender é relativamente fácil, meu caro – discordou Maigret. – Existem loucos de todos os tipos, inclusive colecionadores que adoram guardar secretamente obras-primas, que só mostram aos absolutamente íntimos.
– Então, chefe, o que podemos fazer?
– Tentar a sorte, Lucas. Vamos começar por Montparnasse, território de bêbados, prostitutas, cafetões, artistas e malucos. Quem sabe foi um deles?
APOLLINAIRE SE ESFORÇA
Com um embrulho redondo de 30 x 57 cm debaixo do braço, Gui avançava cuidadosamente. Não podia dar bandeira. Para onde iria? Pensou na condessa polaca Angelica Kostrowicka, importante marchand de obras famosas, conhecida também por investir parte dos lucros em pintores desconhecidos e promissores. Será que compraria quadros furtados? Melhor consultar os amigos. Marchand e receptador não são exatamente a mesma coisa. Como descobrir em qual categoria ela se enquadrava?
Antes de subir, comprou, com o pouco dinheiro que lhe restava, um quilo de pão, meio quilo de salsichas cozidas e um litro de vinho tinto. Ficou liso, mas se chegasse de mãos abanando seria massacrado. Pois não havia prometido?
Subiu aos saltos os degraus, o embrulho redondo debaixo do braço. Bateu com a ponta dos dedos. Alguém abriu um pedacinho, espreitou pela abertura e então escancarou a porta violentamente:
–Papai Noel chegou, pessoal, Papai Noel chegou!
Era Pablo, o mais jovem e animado, mesmo naquela situação.
– Trouxe pão e salsicha – disse Gui, rindo. – Divirtam-se enquanto pensamos no que fazer com essa merda aqui. – E jogou o embrulho redondo sobre a cama.
Entre canções natalinas, os três mergulharam sobre a valiosa sacola de comida, sem dar a menor importância para o embrulho na cama.
ESQUENTA-ESFRIA
Mais pela intuição que o tornara célebre do que por informações concretas, Maigret chegou, depois de muito bater perna pelos botecos de Montparnasse, ao edifício que abrigava a água-furtada na qual os amigos pintores se amontoavam.
Subiram, aos saltos, ele e Lucas. Bateu à porta.
Houve um breve momento de silêncio e depois alguém abriu um pedacinho da porta, espreitando pela abertura.
– Polícia – disse Maigret, colocando o pé na abertura.
Nem era preciso. Imediatamente Pablo, o prestativo, abriu a porta, a boca cheia de salsicha e pão, um copo de vinho na mão.
– Pô, na véspera do Natal? Mas entrem. Façam a gentileza.
Maigret e Lucas entraram. Viram a turma ao redor da mesa, devorando a ceia magra. O inspetor-chefe percebeu que era um daqueles bandos de jovens artistas pobres e sonhadores, que lutavam com unhas e dentes por um lugar ao sol.
“Coitados”, pensou Maigret, “nunca chegarão a lugar algum”.
Olhou em volta. O quarto era de uma pobreza franciscana. Nos cantos, toscos cavaletes e telas recém-pintadas ou virgens. Abriu o pequeno guarda-roupas. Quase nada. Foi ao banheiro acanhado. Nada, também. Olhou para a cama e viu o embrulho redondo, mas não deu importância. “Papel de desenho”, imaginou.
Guillaume Apollinaire, ou Gui, o mais velho da turma, 26 anos completos, já era conhecido como poeta entre os vanguardistas parisienses. Conseguia uns trocados aqui e ali, dando aulas de italiano ou colaborando em jornais.
– Bom apetite, rapazes, e feliz Natal – disse Maigret, saindo com Lucas.
Então Gui abriu o pacote e ergueu a Mona Lisa diante da turma embasbacada.
Começa a envelhecer a mulher mais bela do mundo
Do alto das gloriosas muralhas de Troia o príncipe Páris contemplava, como nos últimos 10 anos, a doce Aurora de dedos róseos se erguendo no horizonte de profundo azul. A cabeça loura apoiada no braço forte do amante, Helena suspirava.
Páris disse:
– Na alta madrugada, como em tantas outras, examinei impotente as inumeráveis fogueiras dos aqueus, que se estendiam como serpentes de fogo na planície ampla. Por que nunca se cansam de vigiar, fustigar e lutar?
Helena respondeu, acariciando-lhe a enrugada fronte:
– Querem vingança e as riquezas troianas, amado príncipe. Não se conformam, principalmente Menelau, o rei de Esparta, que eu tenha fugido dele para os teus braços, deixando vazio seu leito e inconsolável nossa filha Hermíone, de funesto futuro.
VELAM OS AQUEUS
Reclinado em amplo leito de macias plumas, Menelau examinava, contra o azul profundo do horizonte distante, sua taça de vinho, em ouro puro cinzelada.
Menelau disse:
Na alta madrugada, como em tantas outras, admirei impotente as muralhas de Troia, altaneiras e orgulhosas, vendo-me sobre elas, a espada ensanguentada na mão.
Odisseu, o arguto rei de Ítaca, respondeu, erguendo a própria taça.
– O dia de tua vingança chegará, ó rei de Esparta. Vejo que se aproxima a passos largos, tangido pelos touros sagrados de amplos cornos e largos dorsos. Há que ter paciência. Inevitável é vigiar, fustigar e lutar.
PÁRIS SE ENTRISTECE
– Lembras-te, ó doce Helena, de como há dez longos anos te subtraí dos braços poderosos de Menelau para o meu leito feliz? Eras, então, como és, a mais bela de todas as mulheres, ainda que nascidas nos confins do mundo.
– Os pretendentes – disse a ponderada Helena, de cabelos áureos – eram muitos, e a nenhum deles meu coração privilegiava. Foi preciso que Odisseu, o arguto rei de Ítaca, sábio acima de todos, pusesse fim ao impasse.
– Lembro-me bem, ó filha de Zeus – respondeu Páris, de anelados cabelos. – Propôs Odisseu que os pretendentes jurassem respeitar tua escolha, e tu escolheste Menelau, de quem te tomei. Mas há 20 anos foi essa escolha, doce Helena. Como o tempo voa, e com ele nossos mais adoráveis sonhos.
Pensativo, Páris reclinou a cabeça, pois novamente entreviu, na loura cabeça da amada, inúmeros fios argênteos permeando o ouro intenso. E viu aumentadas, em volta dos olhos faiscantes, amargas estrias, assinalando a dura passagem do tempo.
AQUILES VELA PÁTROCLO
Morto por Heitor, que lhe fendera até o pescoço taurino a morena cabeça, Pátroclo jazia envolto em linho branco e ricos unguentos na pira funerária.
Aquiles disse:
– Herói imortal e amigo fiel, tu também havias de cair no campo de luta. Heitor, enganado pelo deus Apolo, comigo te confundiu e te deu morte em peleja justa. O mais nobre dos 28 heróis aqueus vencidos por sua espada e lança poderosas. Eu mesmo, o mais poderoso de nossos guerreiros, só dei morte a 22 troianos. Mas eu te vingarei. Heitor se baterá comigo e sairei vencedor do embate terrível.
Cabeça fendida e esvaziada de miolos pela fúria de Heitor, o outrora destemido Pátroclo deixava-se afundar no Hades, de onde não se retorna e onde não se é feliz.
PÁRIS REFLETE SOBRE TROIA
Aurora de dedos róseos, tendo se erguido no alto céu, desfez-se em leves névoas de pura luz azul e branca, despedindo-se dos mortais.
Lentamente se apagavam as fogueiras dos bravos. Na extensa planície já se notava o movimento frenético de homens e bestas. Ouviram-se gritos e cantos.
Disse Páris:
– Os altos muros da gloriosa Troia sucumbirão à astúcia de Odisseu, conforme determinaram os deuses. Aquiles dará morte a Heitor com um único golpe e, durante nove dias, o arrastará atrás de seu carro, escarnecendo de meu povo. Devolverá o corpo esfacelado, para as tristes honras fúnebres, quando as súplicas de meu pai, o rei Príamo, forem capazes de comovê-lo. Terá valido tanto o que lutei por ti?
Respondeu Helena:
– Serás tu quem matará Aquiles, ferindo-o no calcanhar. Mas que será de mim, a desditosa e infeliz, desprezada por troianos e aqueus? Voltarei para o leito do rei Menelau, em Esparta, que se regozijará de me ter recuperado, embora envelhecida.
ODISSEU RELEMBRA PENÉLOPE
– Há 10 longos anos deixei a gloriosa Ítaca, e com ela meu filho Telêmaco, indefeso diante dos pretendentes ao meu trono. Resistirá Penélope ao assédio de cem pretendentes à sua mão e ao trono? Ardo em fogueira de chamas inclementes, que me corroem os rins e o estômago. Voltarei a vê-los e a recuperar o poder?
E TUDO É NADA
Disse Páris:
– Por ti, apenas por ti e talvez pela minha vaidade, troquei a pacífica vida dos troianos pela guerra interminável. Repito: valeu a pena essa troca?
Respondeu Helena:
– Dei-te de mim tudo o que pude nesses 10 anos, exceto as primícias. Mais não te dei por mais não possuir. Que desejarias ainda que não te pude dar?
Disse Páris, como num lamento profundo:
– Apenas o impossível: a eternização de tua juventude irrecuperável.
Al Capone visita Charles Chaplin em Hollywood
A enorme limusine preta, ornamentada com dourados, exibia na frente, em vez do costumeiro emblema do fabricante, uma sombria águia de asas abertas, esculpida com chumbo extraído de corpos assassinados. Quando parou, diante do portão principal do estúdio, saltaram três homens armados de submetralhadoras. Rapidamente eles se postaram, atentos, nas laterais e na traseira do automóvel, olhando para a direita e para a esquerda. Em seguida, o motorista abriu sua porta, também com uma submetralhadora nas mãos, e deu a volta até o outro lado, abrindo a porta dianteira. Um homem pequeno e rechonchudo desceu, lentamente, encaminhando-se a passos curtos para o portão, no alto do qual se lia “United Artists”.
ARTISTAS EM AÇÃO
Como se esperasse o visitante, o porteiro inclinou-se levemente e empurrou a maçaneta para trás. O homem pequeno e rechonchudo entrou, seguido pelo motorista com a submetralhadora e pelo porteiro.
Ninguém reparou neles nem era razoável que reparassem. Dezenas de pessoas andavam apressadas em meio a câmeras, gruas, torres de iluminação e cenários de todos os tipos e tamanhos, no gigantesco galpão. O porteiro, tomando a dian-teira, bateu suavemente três vezes numa porta sobre a qual se lia “Entrada Proibida”.
– Entre! – ouviu-se lá de dentro.
O porteiro abriu a porta e afastou-se de lado, deixando passar os visitantes.
HOMENS DE AÇÃO
Os dois entraram. O motorista mantinha a submetralhadora nas mãos, mas ninguém parecia ligar. Detrás de uma mesa grande, fumando um grosso charuto, estava um sujeito baixo e magro, com uma loura sentada no colo.
– Boa tarde, Mr. Chaplin – disse o visitante. – É uma honra conhecê-lo.
– A honra é minha, Mr. Capone – respondeu o visitado, expulsando a loura do colo com um safanão, enquanto se levantava e estendia a mão. – Tenha a bondade de sentar-se. – Desapontada, a mulher encolheu-se numa poltrona junto à parede.
O visitante nem olhou para a loura. Sem pressa, acomo-dou-se na única cadeira diante da mesa, colocada em plano levemente inferior, de modo que qualquer visitante pareceria menor que o dono da sala.
– Joe – disse ele, voltando-se para o motorista –, leve com você o berro, deixe no carro, e traga aquela caixa fechada. Você sabe qual – então tirou um charuto do bolso, que acendeu riscando um fósforo na sola do sapato, e soltou uma baforada.
AÇÃO ENTRE AMIGOS
– Gosta de louras, Mr. Chaplin? – indagou o visitante.
– Não mais que de morenas e ruivas, Mr. Capone – respondeu o visitado, com um sorriso amável no rosto ainda jovem.
– Então o senhor é como eu, Mr. Chaplin. Também não tenho preferência quanto a cor. Mas por ser descendente de italianos, como sabe, as louras me fascinam.
– Compreendo, Mr. Capone. Comigo é diferente. Sendo inglês, me sinto mais inclinado para as morenas. Essa loura que viu estava no meu colo por acaso. De modo geral, tanto faz ruiva, loura ou morena. O que vier, eu traço.
Riram um riso breve e olharam-se com simpatia. Eram afins por temperamento e, principalmente, pela coragem de correr riscos e dizer o que pensavam.
– Confesso que há tempos desejava conhecê-lo, Mr. Chaplin. Agradeço por ter autorizado minha visita.
– O mesmo se passa comigo, Mr. Capone. Só não o procurei antes por não saber se seria recebido com apertos de mão ou tiros.
Riram novamente e soltaram baforadas de seus charutos.
AÇÃO E REAÇÃO
A porta se abriu e Joe entrou, uma grande caixa nas mãos.
– Ponha em cima da mesa – disse o visitante, olhando a caixa. E voltando-se para o visitado: – Creio que gostará do presente, Mr. Chaplin. São 12 litros do melhor uísque de milho produzido neste país. De venda totalmente proibida, é lógico.
O visitado riu novamente.
– Decerto que é proibido, Mr. Capone. Tudo que é bom é proibido.
O visitante também riu.
– Parece estranho, não é mesmo? Somos dois homens importantes e famosos, mas o senhor está dentro da lei e eu, fora. A lei não tem nada contra o senhor, mas, ao mesmo tempo, não consegue me pegar. É como se nada tivesse contra mim.
– Entendo, Mr. Capone – disse o visitado olhando fixamente o visitante. – Creio que é tudo um tanto estranho neste país. Hollywood, por exemplo, é a maior rede de prostituição do mundo. No entanto, aos olhos das pessoas, de qualquer nível social, passa como a grande indústria de entretenimento e arte da América.
– Sei disso, Mr. Chaplin – disse o visitante. – Quantas mocinhas já enviei para produtores e diretores de cinema? Centenas, talvez milhares. Não posso ficar com elas, não é mesmo? No meu trabalho, preciso de homens duros e impiedosos. Mas elas surgem às dúzias, vindo de todos os estados, sonhando com fama e riqueza.
– O mesmo acontece entre nós, Mr. Capone – respondeu o visitado. – Ninguém suporta mais tanta mulher em volta. Ou melhor, suporta sim. Nós nos divertimos muito. Mas por quantas camas uma mocinha dessas tem de passar até chegar a mim, que decido seu futuro e, em muitos casos, sua fortuna ou sua miséria?
– Nenhum de nós dois vale nada, não é mesmo, Mr. Chaplin? Ou nós estamos certos e o sistema é que está errado? O que acha o senhor?
– Prefiro acreditar que errado seja o sistema, Mr. Capone. Nós estamos certos, pois não somos hipócritas. O que mata a sociedade é a hipocrisia.
Então os dois ficaram se olhando, novos e velhos amigos desde sempre.